terça-feira, 28 de setembro de 2021

Revolta dos Malês em Alagoas (1815)

    O termo malê era usado como sinônimo de muçulmano, ao menos na Bahia, em 1835, quando houve uma revolta de escravos e libertos (REIS, 2003, p. 115). Os malês, portanto, teriam chegado ao Brasil através do comércio de escravos com a África.

    Em 1814 ocorreu uma revolta de escravos no Recôncavo baiano, e historiadores têm apontado que após o sufocamento da rebelião teria ocorrido a fuga de alguns para o que hoje se denomina Estado de Alagoas, à época Comarca de Alagoas e pertencente a Capitania de Pernambuco. Aqueles escravos que teriam escapado da repressão à revolta na Bahia se organizaram para promover outro movimento em Alagoas no ano de 1815.

Foi, entre os anos de 1814 e 1815, que os cativos da comarca das Alagoas, possivelmente em conjunto com negros ali aquilombados e provenientes de revoltas escravas da capitania da Bahia, começaram a tramar o que as autoridades coloniais de Pernambuco chamaram, mais tarde, de ‘sublevação e sedição dos negros’. Sua intenção, conforme ainda as autoridades, era ‘matar, tomar as terras dos brancos na noite de Natal do ano de 1814’, mas, circunstâncias imprevistas transferiram para a mesma noite de 1815 a eclosão da revolta” (SILVA, 2001, p. 38).

Sobre a origem do termo malê, o historiador João José Reis escreveu o seguinte:

Nina Rodrigues, primeiro estudioso competente dos malês, sugeriu que o termo se deriva de Mali, o poderoso estado muçulmano da Costa do Ouro. Contudo, a explicação que nos parece mais sensata até agora é a de Pierre Verger, que associa o termo malê a imale, expressão iorubá para islão ou muçulmano. Imale, por sua vez, é apontado como sendo derivado de Mali. Desta forma, Nina, Etienne, Bastide e outros estudiosos que apontam a etnia malinke como origem de “malê” teriam passado por cima de uma palavra mais próxima. Mali estaria então na origem da origem, na ordem Mali – imale – malê, que acreditamos a mais correta. (REIS, 2003, p. 115)

Acrescentando que na Bahia, do século XIX,

"malê” não se refere a nenhuma etnia africana particular, mas a qualquer africano que tivesse adotado o islã. Assim, havia nagôs, haussás, jejes, tapas e possivelmente mandingas – enfim, pessoas pertencentes a diversas etnias – que eram malês. (REIS, 2003, pp. 115-116)




    Em Alagoas os escravos africanos adeptos do islamismo também eram identificados por Malê (DUARTE, 1958, p. 25). Outro grupo, ou “nação”, além dos malês, eram identificados como muçulmanos, os haussás (REIS, 2003, p. 116).

No entanto, é errado afirmar a exclusividade dos haussás nos negócios islâmicos na Bahia. Como vimos, o islã era uma religião em expansão nos reinos iorubás, e certamente centenas de iorubás muçulmanos aqui aportaram como escravos. Não duvidamos, inclusive, que por volta de 1835 os malês baianos fossem nagôs na sua maioria e não filhos de etnias minoritárias como o haussá ou, menor ainda, a tapa. De qualquer modo, os malês-nagôs tinham poder e prestígio dentro da comunidade muçulmana. (REIS, 2003, p. 117)


    Além de ter sido articulado por escravos muçulmanos que fugiram da Bahia. A rebelião também contava com libertos e índios: “Em Alagoas configurou-se uma prática existente nas revoltas baianas, a articulação entre aquilombados, escravizados e libertos que habitavam as vilas e cidades – era essa prática que viabilizava a estratégia e o planejamento do levante” (MARQUES, 2018, p. 151). Geraldo Luiz da Silva afirmou que não foi “a primeira vez que índios e negros pareciam construir um projeto comum de sedição”, porquena conspiração haussá abortada em Salvador, em maio de 1814, estavam envolvidos, além de ‘alguns mulatos e crioulos de fora da cidade’, alguns índios, que, segundo uma fonte, ‘queriam a sua terra que os Portugueses lhes tinham tomado’”. (SILVA, 2001, p. 43)

    Os dois principais lugares que os revoltosos se mobilizaram foram Penedo e Alagoas do Sul, atual cidade de Marechal Deodoro, que era a sede da Comarca. Mas era em Penedo que “havia maior número de negros Haussás, vindos da Bahia, negros que, por longos anos ainda depois, para lá se encaminharam” (DUARTE, 1958, p. 31). A revolta deveria ocorrer na noite de 25 de dezembro de 1815 na Comarca das Alagoas, “um movimento insurrecional, instigados pelos Haussás evadidos da Bahia” (DUARTE, 1958, p. 43). A data não foi escolhida por acaso, pois “muitas revoltas escravas eram planejadas para os dias de festas” (MARQUES, 2018, pp. 154-155). Esses momentos seriam mais propícios ao sucesso, pois nos momentos de celebração e divertimento haveria menos vigilância por parte das autoridades e da população em geral.

    As autoridades locais ficaram sabendo do movimento, e o ouvidor da Comarca, Antônio Batalha afirmou que em julho de 1815 recebeu informações que “os escravos negros seduzidos por alguns que e escaparam da sedição da Cidade da Bahia se pretendiam sublevar” (MARQUES, 2018, p. 155), e com isso passou a tomar providências, iniciando as diligências e prisões dos suspeitos antes que a revolta eclodisse:

Começaram desde logo as prisões, a torto e a direita, e lavraram-se “os autos de achada de ferros ofensivos, e de perguntas de onde suficientemente constara a intimação criminosa”. Arrancaram-se as confissões. Os detidos foram em número de vinte e seis (26), entre os quais “onze dos que se se propunham os mais temíveis”. Sempre minucioso nos detalhes de suas diligências, ainda ver o Ouvidor Batalha a Sua Alteza Real que não podendo prever “as consequências das prisões que fizera e das que teria de fazer”, removeu alguns presos para Pernambuco e para a cadeia da Vila de Atalaia, conservando outros poucos na cadeia da Vila das Alagoas que, além de pequena, não oferecia segurança. Mandou ainda afixar editais concitando os senhores de escravos e habitantes da Comarca a lhe comunicarem “os rumores ou movimento de seus escravos”, receoso de que as prisões efetuadas excitassem o ânimo dos escravos negros e dos libertos e precipitassem os acontecimentos. Deixou a Vila das Alagoas somente depois de haver estabelecido um sistema de policiamento completo, capaz de assegurar a tranquilidade e perfeita fiscalização dos negros evadidos da revolta da Bahia” (DUARTE, 1958, pp. 48-49).


    As prisões também ocorreram pela denúncia dos senhores contra seus escravos que eram considerados suspeitos.

    A mobilização da população negra em Alagoas caracterizou mais do que uma revolta sufocada, conforme aponta Danilo Luiz Marques quando descreve que ao estudar as circunstâncias “depara-se com revoltosos bem articulados que detinham uma ‘estratégia política de resistência’, o que gerou enfrentamento com o poder senhorial durante meses” (MARQUES, 2018, p. 18). Não foi um evento isolado, teria se articulado com outros movimentos na Bahia.

O autor esclarece que

Em vez de uma revolta reprimida pelas autoridades antes de sua eclosão e sem nenhuma espécie de resistência por parte dos revoltosos, ou seja, uma conspiração premeditada e sufocada pelo ouvidor Batalha, percebem-se fortes indícios de que foram tensos e conflituosos os meses de julho e agosto de 1815 na comarca de Alagoas. Não à toa, o Marechal-Inspetor José Roberto Pereira da Silva relatou em correspondência endereçada ao governador de Pernambuco a urgência e o anseio pela chegada das tropas formadas por indígenas com a finalidade de adentrar as matas e capturar os revoltosos foragidos. Essa informação somada à ocorrência de assaltos aos casarões dos senhores de engenho na região de Tuquanduba mostram que a sedição foi, sim, premeditada pelas autoridades, mas essa ação levou também a resistências, e não ao seu sufocamento imediato. Os revoltosos se estabeleceram nas matas ao redor da Vila de Alagoas com o intuito de se rearticularem, objetivavam rever seus planos e ações de acordo com a nova conjuntura que estava posta” (MARQUES, 2018, p. 165).


    Em agosto de 1815 um contingente militar foi enviado do Recife para Alagoas, e em novembro o marechal que comandava tropa informou que “acerca da tranquilidade então reinante na comarca das Alagoas, posto que seus moradores estavam ‘mais sossegados dos receios com que estavam aterrados, e de não haverem quilombos alguns, segundo as partes que recebo dos Comandantes mais remotos’” (SILVA, 2001, p. 51); neste momento os revoltosos presos estavam sendo interrogados na cidade do Recife, capital pernambucana Enquanto. Durante o trâmite do julgamento alguns morreram na cadeia e no ano seguinte saiu a sentença: alguns foram enviados para a prisão na ilha de Fernando de Noronha, outros condenados a açoites e à forca para o que foi considerado líder da rebelião.

Ao todo, 38 pessoas foram implicadas na insurreição, sendo que um deles, como se verá melhor adiante, era um “homem branco filho de Portugal”. Entre os cativos, 24 pessoas pareciam ter participado diretamente da organização da sedição, enquanto os demais foram apenas tidos como “suspeitos”. A festa, curiosamente, revelou-se naquela ocasião não apenas motivo de enlevar-se espiritualmente, mas uma forma estratégica de planejamento. (SILVA, 2001, p. 40)


    Em novembro de 1815, o marechal Pereira da Silva “informava acerca da tranquilidade então reinante na comarca das Alagoas”, e que não havia mais indícios ou movimentações suspeitas que caracterizasse uma rebelião.

Conclusivamente, pode-se dizer que o planejamento da sedição da comarca das Alagoas tinha um padrão impressionantemente comum em relação às revoltas baianas do mesmo período. Tal como estas, aquele plano foi preparado ao longo de ‘batuques’, regados com bebidas espirituosas e muitos brindes à nova era; através daquele projeto estabeleceram-se contatos entre cativos da cidade e negros aquilombados nas matas; o levante tinha como data de eclosão um dia religioso — o Natal, no qual as autoridades militares estariam mais relaxadas —; acresce-se que o plano fora articulado por lideranças que se situavam no interior de hierarquias constituídas pelos negros livres e escravos; finalmente, é fato indicado na devassa que suas lideranças eram cativos da ‘nação’ haussá, embora, como em outros casos ocorridos na Bahia na mesma época, adesões de escravos de outras ‘nações’, incluindo até mesmo uma possível aliança indígena, também tenham se verificado. Acostumado ao marasmo de sua capitania, o governo de Pernambuco teve dificuldades em lidar com esse inusitado conjunto de fatos”. (SILVA, 2001, p. 44)


    Em suma, uma resistência mobilizada por uma população majoritariamente negra, escravos ou libertos, mais também que contou com a participação da população indígena. Não foi um movimento esporádico, mais contou com uma articulação e mobilização entre os seus participantes, possivelmente que circulavam entre a Bahia e Alagoas:

a organização do movimento dos cativos alagoanos decorria principalmente de um sentimento étnico, pois, como foi notado naquela ocasião, “o projeto de sedição lavrava principalmente pelos escravos da Nação Ussá, e pelos de gentes pobres, que por isso tinham mais liberdade na Vila das Alagoas, e Povoações sobreditas de seu termo, sem contudo ser em geral ignorado dos escravos de outras Nações, e de outras Vilas, que de noite, de grandes distâncias, e pelo interior das matas vinham ao Quilombo dos negros fugidos da sedição da Bahia”. Tais quilombolas, ademais, pareciam “deliberados a tomarem as armas contra os Brancos logo que rompesse a sedição”. Infelizmente, apenas 7 dos 38 implicados na sedição de Alagoas tinham a indicação de sua origem africana; todos os 7 eram genericamente indicados como oriundos da “Costa da Mina”, exceto dois, cujas “nações” tinham sido rigorosamente discriminadas: um fulani e um haussá, ambos chamados João, e ambos de propriedade do mesmo senhor, o Capitão Antônio Firmiano de Macedo Braga. Parece clara, portanto, como se afirma neste documento, uma identidade originada na África Ocidental dos principais implicados na sedição, o que remete, mais uma vez, à ideia segundo a qual as tensões decorrentes da importação de um grande número de “escravos guerreiros” não se confinaram à capitania da Bahia. (SILVA, 2001. p. 41)


https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Debret_-_Negros_Cangueiros.jpg


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Referências:

DUARTE, Abelardo. Negros muçulmanos nas Alagoas (os malês). Maceió: Edições Caeté, 1958.

MARQUES, Danilo Luiz. Sob a “sombra” de Palmares: escravidão, memória e resistência na Alagoas oitocentista. Tese (doutorado). São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.

REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Brasiliense, 1986.

SILVA, Luiz Geraldo. “’Sementes da sedição’: etnia, revolta escrava e controle social na América Portuguesa (1808-1817)”. “Afro-Ásia”. Salvador, n. 25-26, p. 9-60, 2001.